apenas um cigarro

Felipe Loureiro
5 min readApr 10, 2020

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Não acredito que a razão disso ter acontecido tenha a ver com um certo ódio em relação aos outros seres humanos, também não acho que signifique que eu odeie idosos. Eu apenas precisava fumar um cigarro.
De acordo com os fatos ocorridos recentemente, é possível que as pessoas passem a me ver dessa forma. Talvez me chamem de misantropo, revoltado, terrorista ou sei lá o quê. Contudo, eu apenas precisava fumar um cigarro. Não vejo nenhum mal nisso, ajuda a relaxar a cabeça, ainda mais para alguém como eu, que trabalha em um escritório, passando dias inteiros na frente de um computador a comparar números em inúmeras planilhas. Era apenas um cigarro.
Em minha rotina de trabalhador medíocre de uma empresa também medíocre situada no centro da cidade maravilhosa, sair para fumar era um momento de acerto de contas comigo mesmo. No entanto, as leis anti-tabagistas ficaram mais rígidas, de modo que precisava caminhar uns cem ou duzentos metros até uma esquina descoberta onde podia acender o careta sem escutar reclamações mais explícitas. Porém, felicidade de trabalhador não chega fácil, por isso, invariavelmente eu me estressava no caminho entre o escritório e meu lugar ao sol.
No decorrer dos oito anos que estou nesse emprego, nunca tive uma promoção, nem aumento salarial, apenas os dissídios protocolares, jamais recebi um elogio e sequer tentei pensar fora da caixa. A grande emoção que marcara minha vida profissional até este momento foi ter começado a fumar. Dessa maneira, eu realmente estava precisando de um cigarro.
Salvei a planilha, desliguei o monitor, peguei o isqueiro, achei o maço amassado na mochila, coloquei o telefone no bolso e segui em direção ao elevador, que, misteriosamente estava no andar. Não me recordava da última vez que isso ocorreu, normalmente precisava esperar uns bons minutos até a chegada dele, as vezes vinham cheio dos andares superiores, o que me fazia ter que esperar por uma próxima viagem. Nesta manhã, a sorte me sorriu de tal forma que já podia sentir o aroma de tabaco no ar, além do mais, a vontade de fazer fumaça me deixou com água na boca, cogitei até acender o cigarro na portaria do prédio e sair caminhando fumante e feliz. Nesse sentido, o bom humor que me acometeu me fez até aceitar melhor as regras, de modo que, saí caminhando apressadamente até à minha esquina favorita. Afinal, estava apenas a um cigarro de distância da minha plenitude.
A vida do trabalhador brasileiro é repleta de incertezas, mas, existe uma verdade sólida e inelutável que se resume na seguinte assertiva: “sempre haverá um porém”. Nessa perspectiva, a alegria de ter o elevador prontamente disponível falseou a desgraça que viria a seguir. Acabei sendo acometido por uma maldição que me assombrava diariamente há pelo menos três anos. Em todas as minhas fugas tabagistas matinais, o meu caminho era atravancado por essa senhora que passeava lépida e fagueira com seu vira-lata de estimação. A calçada estreita nos colocava numa situação de confronto, a velha e o bicho andando lentamente na frente e o fumante ansioso atrás. A movimentação de carros na rua era intensa, ao passo que, não era possível ultrapassá-la pelo asfalto. Portanto, um trecho que eu poderia cruzar em cerca de três ou quatro minutos se tornava uma longa estrada que exigia de mim longos dez minutos de viagem. Logo, gastava mais tempo indo e voltando que fumando. Nesse caso, talvez fosse melhor fumar dois cigarros, embora precisasse apenas de um.
Felizmente, essa experiência desagradável só afetava a um dos três cigarros que fumava em um dia normal de trabalho, não me recordava de cruzar com a velhota na volta do almoço ou no meio da tarde. Entretanto, hoje foi diferente. A velha devia estar treinando para a maratona mais lenta do mundo e a pista escolhida para treinar foi a calçada em frente ao prédio onde trabalho. Nesse contexto, seu caminhar claudicante me fez gastar tanto tempo indo e voltando do restaurante que posso pagar, que sequer me sobraram uns minutos para fumar.
A tarde de trabalho começou com uma ausência, posto que, realmente estava precisando de um cigarro e não pude nem gozar desse mísero prazer. Dessa maneira, não é difícil supor que havia um misto de ansiedade com tristeza bastante explosivo dentro de mim, o que tornou insustentável escutar aquelas palavras odiosas sobre mim proferidas pelo meu chefe, Doutor Barcelos -, “há oito anos você comete os mesmos erros. Só te mantenho aqui porque o resto da equipe é tão merda quanto você. Desse jeito você nunca irá progredir na carreira.” Respirei bem fundo e disse que corrigiria as inconformidades. Dito isso, salvei a planilha, desliguei o monitor, peguei o isqueiro, achei o maço amassado na mochila, coloquei o telefone no bolso e segui em direção ao elevador, que, demorou bastante para chegar ao meu andar. Desci puto, disposto a acender o cigarro no elevador e botar fogo naquela caralha de prédio. No entanto, achei melhor me acalmar porque se alguém dirigisse qualquer palavra a mim, fatalmente me tiraria do sério. Naquela hora, eu precisava mesmo de um cigarro.
Aceitei as condições reais que me foram impostas pela vida, respeitei as regras e fiz apenas um pedido a Deus: “favor não colocar essa velha desgraçada em meu caminho novamente.” Dito e feito, o ser supremo me ajudou e o trajeto estava livre de idosas e seus cães. Estufei o peito e comecei a caminhar animado pela fluidez que me foi garantida. Porém, chegando ao meu recanto feliz, notei que meu isqueiro parara de funcionar e que não havia fumante ao redor. O desespero já ganhava forma dentro de mim, até que notei um senhor fumando tranquilamente na outra esquina da mesma calçada. A manobra era fácil, bastava caminhar no sentido inverso, indo na direção do meu trabalho, que alguns metros depois já estaria com meu cigarro aceso. Contudo, mal começara a dar os primeiros passos quando percebi que a pessoa a minha frente andava muito devagar, de modo que, optei por ultrapassá-la. Concluída essa manobra, deparei-me com algo mais terrível ainda, a velha e seu pulguento estavam novamente na minha frente, andando ainda mais devagar, aparentemente só por diversão.
Aquela visão me assolou de tal forma que perdi o controle. Realmente não sei bem porque fiz aquilo, me recordo apenas que a calçada era estreita e eu precisava mesmo fumar um cigarro. Talvez tenha sido um acidente, me recordo de tentar ultrapassá-la, mas não usando a rua como trilha. Nessa situação, poupei-me dos riscos e optei por passar espremido entre parede, velha e cachorro. A manobra não foi executada com muita perícia, tanto que o cachorro se apavorou e correu pra baixo da saia de sua dona, que, por sua vez, assustou-se e tropeçou no próprio bichinho acabando por se desequilibrar. Conforme já enunciei, a calçada era estreita, por isso a velha acabou cambaleando em direção à rua e teve a infelicidade de se chocar com uma kombi que vendia trinta ovos por apenas dez reais.
Talvez eu pudesse ter tentado segurá-la pelos braços, possivelmente evitaria aquele som que misturava pneus cantando e ossos se quebrando. Mas, em uma mão estava o isqueiro ruim, na outra o maço. Eu realmente precisava fumar, mesmo que fosse apenas um cigarro.

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Felipe Loureiro

Escritor, redator, professor e podcaster. Formado em história pela UFRJ, Mestre em Planejamento Urbano e Regional no Ippur e Doutor em Sociologia pela UC