Da utilidade do ódio

Felipe Loureiro
5 min readJun 8, 2020

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Nunca gostei de princesas, dos príncipes eu até que gostava. Quanto aos super-heróis, não via neles a força de um ídolo realmente poderoso. Embora quando menino, reparava em seus corpos e me imaginava vestindo sungas sobre a calça do uniforme. Dessa maneira, cancelado pelos meninos por ser mulherzinha e limitado pelas meninas também por ser mulherzinha, me construí sujeito.

Aos 23 anos, sentado na beira da cama de um motel, onde jazia morto o corpo de mais uma travesti, lembrei-me da Mariana. A coleguinha de escola que morreu aos 11 anos, depois de tropeçar no terraço após um susto, dado por mim, é claro. A verdade é que eu gostava de estar no controle da situação. Como minha história de vida nunca me permitiu experimentar tal sensação, decidi conseguir isso por meus próprios meios.

As pessoas não gostam de falar sobre isso, mas matar alguém é bom demais. Acredito que seja melhor que o sexo, porque numa transa há uma disputa territorial, são duas pessoas querendo que a coisa role no seu ritmo para chegar mais rápido ao destino. No homicídio não tem isso. Quando cometo um assassinato sinto o prazer de ver um indivíduo despossuído, ressignificando a existência em torno de um único desejo, a salvação. Porém, não sou um psicopata que almeja ocupar o lugar de Deus, elegendo quem será salvo e quem vai se danar. Apenas me preocupo em dar fim ao corpo físico, não me importa muito o destino das almas.

O que me agrada sinceramente é poder testemunhar a humildade emergindo das almas mais vaidosas. Mas no meu trabalho não pode haver perdão, basta um para que se ponha tudo a perder. Não posso me dar ao luxo de ser preso agora. Acabei de começar meu trabalho, preciso fazer meu nome antes do ferro enferrujar. Por isso, preciso sempre estar focado, porque se bater uma sensibilidade posso acabar numa cadeia xexelenta servindo de banquete pra vagabundo.

Dizem que a morte é uma libertação, lembro de Simon Bolívar — el libertador de sudamérica — Com certeza ele ceifou várias vidas. Talvez o que me falte seja um significado, um ideal de ocasião que justifique minhas ações cotidianas. Contudo, nunca me meti com política, nem me interessam as ideologias. Sei lá, o que me motiva é a simples emoção de ser senhor do destino de alguém. Sendo assim, não tenho vontade de carregar bandeiras ou bíblias, minha taurus 9mm com silenciador é mais que suficiente.

Uma vez eu fui à igreja, foi uma boa experiência, vi senhoras e senhores temendo a morte de um jeito tão bonito que deu vontade de ter um fuzil. Gostei daquelas pessoas, adoraria ajudá-las a encontrar a quem tanto procuram, Deus. Acho que o altíssimo deve gostar de mim, pois quando me proponho a fazer uma entrega não atraso e não erro o endereço, diferentemente dos correios. Com certeza sou querido por ele, o mundo está cheio de gente e essas pessoas pecam demais. O cara queimou Sodoma e Gomorra sacrificando populações inteiras sem pensar muito na possibilidade de ter alguém decente ali. Duvido que vá se incomodar que seu filhão aqui faça um trabalho semelhante, em menor escala infelizmente.

Eu gostava da igreja, mas lá eu não sentia vontade de matar, porque a maioria das pessoas ali já era humilde e despossuída. Na minha primeira visita, até pensei em largar o dedo numa velha manca, mas depois a conheci. Dona Sônia era a inocência em forma de pessoa, morria progressivamente sufocada pelas dores de uma artrose reumatóide — é a fé que me mantém de pé, meu filho — Ela me disse certa vez. Tentei explicar à senhora que um cirurgia viria a calhar, no entanto ela já estava em tratamento. De acordo com o Pastor Waldecir, uma garrafinha da água ungida do Rio Jordão por dia, salvaria o corpo e a alma da velhota.

Certa vez ouvi uma música que dizia — “na casa do senhor não existe Satanás, xô Satanás” — Discordei da premissa básica, existe sim. Não falo de mim, sou apenas um assassino, tenho palavra. Falo do Pastor Waldecir, que fatura a aposentadoria da Dona Sônia privando a desgraçada de um plano de saúde. Xô Satanás.

Numa terça-feira ela me ligou. Disse que queria ir à Igreja, pois haveria uma sessão do descarrego. Perguntei, e daí? Respondeu que estava com muita dor, mas tinha esperança de tirar o encosto de sua virilha. Aceitei acompanhá-la, pois tinha pena do sofrimento da velhota, também queria dar uma sacada melhor no Pastor. Xô Satanás.

Cheguei na casa de Dona Sônia. Deveria ter sido um belo apartamento no passado, hoje tudo era meio miserável, como se a vida a tivesse traído. A senhora me contou que tinha sido professora e ganhava uma boa aposentadoria, mas que entre dízimo, ofertas e remédios, nada sobrava para ela. Era doloroso vê-la tentando caminhar, via-se nos olhos que cada passo que dava era um grande sacrifício. Também me contou que era viúva há cinco anos, tinha vivido feliz por trinta anos com seu marido Nicanor, mas agora sua rotina agora se limitava aos cultos e a televisão. Me deu pena. Perguntei a ela se ainda esperava algo da vida. Respondeu que só queria a chance de morrer em paz e reencontrar seu amor no reino dos céus. Disse a ela que sua alma era pura, por isso Deus e Nicanor a aguardavam ansiosamente. Dei um tiro certeiro em seu coração. Ela merecia um belo velório com caixão aberto.

Não chorei por Dona Sônia. Xô Satanás. Fui à Igreja, não para pedir perdão, porque nada fiz nada de errado. Afinal, quem retirou a vida dela foi o Pastor, quando a conheci já estava morta, faltava apenas o carimbo oficial. Me sentei no último banco, porque a energia estava pesada, preferi observar à distância. Waldecir expurgava o demônio do corpo dos fiéis como se fritasse batatas no McDonald´s.

Escutei toda sorte de exortações e de chantagens emocionais. Entendi que tudo era uma questão de quantia e que Deus era ganancioso. Achei estranho, mas permaneci quieto. Pensei em Dona Sônia, comecei a enxergar seu rosto em todas as senhoras que subiam no palco para serem purificadas. Antes que a cerimônia acabasse, o Pastor achou por bem discursar sobre o pecado — o demônio está à espreita, mudando de formato para conseguir nos afastar do caminho da salvação. Mas Deus é muito poderoso, somos os eleitos por ele e por isso precisamos combater o pecado, seja dentro de nós, dentro de nossa casa, até dentro da nossa congregação. O Nosso Senhor precisa de uma Igreja forte, capaz de luta contra o mal, por isso precisamos de suas ofertas. Lembrem-se que quem dá a Deus recebe em dobro — Suas palavras me tocaram.

Levantei discretamente, parei no meio do corredor central, frente a frente com o Pastor. Xô Satanás. Saquei minha Taurus e larguei uma bala bem na sua virilha. Caminhei calmamente até o altar, peguei uma garrafa da água ungida do Rio Jordão, dei na mão dele e disse — beba essa porra, seu filho da puta!

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Felipe Loureiro

Escritor, redator, professor e podcaster. Formado em história pela UFRJ, Mestre em Planejamento Urbano e Regional no Ippur e Doutor em Sociologia pela UC