Lívia e o ovo

Felipe Loureiro
4 min readApr 2, 2020

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Lívia viu o ovo e o ovo disse coisas pra Lívia. Um fato qualquer, que ocorreu em um dia qualquer, porém, desde então sua vida e sua loucura nunca mais foram as mesmas. É verdade que a moça em questão já não batia muito bem da cabeça naquela altura em que o ovo lhe revelou um futuro inesperado. Contudo, a experiência profética vivenciada remexeu ainda mais com os pobres neurônios daquela.

Lívia adorava cozinhar. Os pratos que elaborava eram sempre individuais, posto que, a vida fez questão de privá-la da possibilidade de grandes banquetes familiares. Afinal, tendo perdido a mãe tão cedo lhe faltava alguém que oferecesse orientações adequadas acerca do corte das cebolas ou do ponto exato das massas. Ainda assim, cozinhava, sustentada pelo único princípio cristão que sua mãe tivera tempo e força de fincar em sua mente: “fazer o bem, sem olhar a quem”. Como não tinha ninguém para o bem, nem para o mal, fazia o bem para si mesma.

Ainda acerca das questões familiares que afetavam essa jovem, pode-se destacar que, na ausência da mãe, restou-lhe o pai. No entanto, esse as vezes era carnaval, noutras festa de são João, ou, até mesmo Natal. Digo isso pois, aparecia em média uma vez por ano, variando apenas a época ou a intenção. Em certas ocasiões levava a menina a festas, noutras à igreja, ou, trazia-lhe presentes. Entretanto, a paternidade e a presença que tanta falta fazia à garota, o dito pai nunca se interessou em lhe ofertar.

Dessa maneira, na falta de quem lhe cuidasse, Lívia cuidava de si mesma e fazia isso com grande esmero. Além dos exercícios físicos regulares e dos remédios que engolia, o cuidado que realmente agradava a moça era o de cozinhar delícias, as quais consumia quase sempre individualmente.

Contudo, pouco a pouco veio chegando a maturidade, quando a menina se percebeu mulher e, de maneira inelutável, o tempo se tornou escasso. Nesse sentido, as horas gastas na cozinha foram reduzidas drasticamente, limitando-se ao tempo estritamente necessário para a produção de alimentos úteis à manutenção do seu corpo funcional. Desse modo, desenvolveu um hábito terapêutico deveras curioso, quando ficava triste, nervosa ou ansiosa, a moça fritava ovos.

Conforme os anos se aprofundavam e a vida se tornava desértica, Lívia manteve o seu curioso hábito e o aperfeiçoou, dedicando-se a buscar a perfeição estética em cada ovo que fritasse. Lembro-me como fosse hoje, numa das primeiras conversas íntimas que tivemos, a moça me confessou estar muito magoada com seu namorado, um singelo rapaz a quem tentava amar. Neste exato dia, diante da frigideira, tentou executar uma de suas especialidades, ovo frito com a gema mole. Entretanto, o que notou diante de seus olhos foi um ovo instável, com a gema tão disforme que produziu uma imagem semelhante a do símbolo oriental yng e yang, reconhecido por significar equilíbrio. Disse-me nessa altura que realmente estava precisando de equilíbrio interior, em seguida brincou com a possibilidade de vislumbrar os fatos futuros nas imagens formada pelos ovos que fritava.

Nessa perspectiva, algumas semanas depois surgiu em sua frigideira antiaderente a imagem de são Jorge montado em seu cavalo e a moça concluiu que precisava de proteção. Ao invés de buscar auxílio na Igreja Católica dedicada a tal santo, ou, em um terreiro de Umbanda, a moça veio a mim com tal notícia e eu nem soube o que dizer, apenas orientei que comprasse uma muda da planta conhecida como espada de São Jorge, colocasse próxima à porta de casa e regasse três vezes na semana. A moça até seguiu meu conselho, mas o rapaz a quem tentava amar não gostou da planta e retirou de seu apartamento sem que ela percebesse.

A despeito disso, dormiram juntos, tentaram se amar, ele gozou, ela tentou, ou seja, nada de novo sob o sol. Até que na manhã seguinte acordaram juntos. O rapaz cobrou de Lívia um delicioso café da manhã e, naturalmente, a moça foi ao fogão fritar seus ovos. Contudo, para um cristão as vezes basta um instante para que tudo mude nessa vida. Eis que de algo tão natural e, em certa medida mecânico, deu-se uma mudança que afetou seu destino de uma vez por todas: Lívia viu o ovo e o ovo desenhou com as tintas da gema e grande clareza um bebê na quentura de sua frigideira antiaderente. Lívia fotografou a imagem com seu telefone, Lívia me enviou a imagem através do seu telefone. Lívia foi à farmácia, comprou um teste de gravidez, voltou à casa, entrou no banheiro, fez o teste e, por fim veio o resultado. Lívia estava grávida.

A moça ainda não era capaz de amar o rapaz, seria capaz de amar sua obra? Difícil! Disse-me que tentaria abortar sem ao menos revelar a seu fecundador da ocorrência da gravidez.

Quanto a mim, logo que soube de suas intenções, orientei que relaxasse um pouco, que pensasse um pouco melhor pois haveriam consequências físicas e psicológicas em decorrência de qualquer escolha. Ressaltei também que ela deveria decidir apenas após uma boa noite de sono, recordo-me de estimulá-la a fritar um ovo logo que acordasse no dia seguinte, visando ter o máximo de informações possíveis antes de escolher seu caminho. Nesse contexto, achei importante acompanhar minha amiga naquele momento, tão logo acordei, ainda sob os primeiros raios da manhã me dirigi à sua casa a tempo de estar lá para ver o ovo cair apodrecido junto à manteiga derretida que suava na chapa quente da sua frigideira antiaderente. Lívia não era de ferro, mas não era de manteiga, por isso não se derreteu e afirmou sem nenhum medo:

– eu não quero ter essa criança.

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Felipe Loureiro

Escritor, redator, professor e podcaster. Formado em história pela UFRJ, Mestre em Planejamento Urbano e Regional no Ippur e Doutor em Sociologia pela UC