Perdeu, playboy.

Felipe Loureiro
9 min readJun 1, 2020

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Carlinha se levantou, estufou o peito e se apressou em dizer — precisamos fazer alguma coisa — Após essa manifestação, o silêncio vigorou. Sabíamos que ela tinha razão, que uma oportunidade como aquela não surgiria novamente nessa encarnação. A menina seguia de pé, diante de nós, olhando em nossos rostos, sob a expectativa de que tomássemos alguma atitude. O seu olhar era encorajador, estampava um certo ar de desafio, como se muito dissesse sem que fosse necessário usar palavras — há anos falamos disso, chegou a hora de fazer.

Apesar de gastarmos nossa vida gritando palavras de ordem, éramos tão desordenados que talvez estivéssemos condenados aos radicalismos mais deprimentes, o de gabinete e o de boteco. Entretanto, uma porta se abria nos possibilitando enxergar um caminho diferente. Era gostoso imaginar um mundo no qual fôssemos agentes efetivos da história, não apenas comentadores baratos da conjuntura em questão. Carla estava certa.

Enquanto éramos exortados por nossa amiga o mundo seguia normalmente. Estávamos no nosso local habitual, epicentro da maledicência militante carioca, o duvidoso “Bar da Cachaça”. Entre dezenas de mesas e pessoas, a presença de uma mulher em pé conclamando a vanguarda para a batalha passava despercebida. Talvez todos os presentes já soubessem de sua condenação e estavam conscientes de seu papel secundário no mundo. Porém, Carlinha não aceitava essa condição. Na verdade, nenhum de nós aceitava explicitamente, contudo, foi necessário um chamamento agressivo para que despertássemos da inércia.

Frequentávamos aquele bar há uns dez anos, desde que éramos colegas de faculdade. Aquelas mesas já tinha ouvido toda sorte de assuntos emergirem de nossas bocas. Entretanto, havia um tema comum: “paredão”. Era certo como dois e dois são quatro que na sexta-feira nos encontraríamos no mesmo bar, beberíamos qualquer cerveja que estivesse em promoção, ficaríamos chapados e abordaríamos o mesmo tema de sempre. Em regra, era Caio quem lançava o questionamento — se a revolução finalmente acontecesse, quem você indicaria ao pelotão de justiçamentos? O que um dia foi um debate político inocente, tornou-se um jogo de boteco. Dessa maneira, a brincadeira evoluiu e se organizou, portanto quem indicasse à morte uma pessoa que não merecia o paredão deveria tomar uma dose de pinga.

Pode parecer absurdo ou pérfido que pessoas gastem seu tempo livre imaginando quem gostariam de ver cair morto cravejado de balas. Contudo, estamos no Brasil, lugar onde sonhar a morte de políticos alimenta a esperança de um futuro melhor. Caso revelássemos a lista de quem desejamos matar ao longo desses anos, ninguém duvidaria que viveríamos um país melhor caso fôssemos mais corajosos. Curiosamente, as coisas são tão loucas por aqui que pessoas escrotas da década passada seguem figurando em nossos fetiches mais mórbidos. Além disso, como nosso país é um poço sem fundo de desgraças, as coisas pioraram tanto desde que começamos a brincar, que alguns inimigos mortais do passado, hoje são toleráveis aliados. Provavelmente, alguns nomes elencados para participar do paredão dos nossos sonhos, já não são mais conhecidos por grande parte da população. Contudo, nós não esquecemos, nem nunca vamos esquecer.

O ímpeto dos jovens é uma coisa linda, sob efeito de bebida então nem se fala, passamos a desconhecer o que é perdão. Era sexta, estávamos no bar, a cerveja já falava alto dentro de nossos corpos, quando o impossível aconteceu. Enquanto bebíamos e fumávamos compulsivamente em nossa mesa situada na calçada da Rua Mem de Sá, percebemos umas criaturas com um perfil distinto da fauna local. Dois homens de terno e gravata dobrando a esquina da Av. Gomes Freire não é coisa desse mundo, talvez fossem pastores ou advogados, quem sabe não seriam políticos. Resumindo, só podia se tratar de uma dupla de filhodasputa.

Qualquer ser humano merda cruzando o passeio não chega a ser assunto de debates, contudo, Carlinha e Caio são atentos à política. Desse modo, nos poucos segundos em que os homens engravatados estiveram sob os nossos olhares, desde que vieram de sei lá aonde, até entrarem no Nova Capela, pra encher o cu de cabrito, foi tempo suficiente para o casal se lembrar que um dos caras era um deputado federal. Porém, não era um eleito qualquer, tratava-se de um legislador do mal, membro da bancada da bala e fiel seguidor de todas as ideias necropolíticas da moda.

Após algumas pesquisas na internet, Caio confirmou a identidade do alvo — Deputado Pastor Santiago, advogado, evangélico, conservador, defensor da família e muitas outras qualificações que escondiam sua verdadeira atividade profissional: ser um merda cotidiano — Esse cara nem era dos piores, figurou apenas duas vezes nas nossas listas, a primeira por fazer declarações contrárias às liberdades individuais, a segunda por uma acusação de lavar dinheiro da Milícia em suas igrejas. Nessa perspectiva, chegamos a uma situação limite, daquelas em que são tomadas em poucos segundos decisões que podem definir o resto da vida. Pela primeira vez, um condenado pelo nosso tribunal etílico estava ao alcance de nossas mãos.

Carlinha estava certa. Caio parecia apoiar sua namorada. Os outros três ocupantes da mesa, grupo no qual me incluo, vacilavam. A mulher não desistiu, seguiu argumentando e nos cobrando uma ação — é a única chance que temos de fazer algo realmente significativo. A gente até pode se ferrar, mas seremos lembrados — Como o impasse não se dissolvia, decidi intervir:

- Carlinha, mas como poderíamos fazer isso? Quem tem uma pistola pra me emprestar?

- Pistola? Tá doido? Muito escândalo. Precisamos ser silenciosos e eficazes.

- O que você sugere? — questionou Caio.

- Sugiro que a gente fique aqui, à espreita dele. Quando o deputado sair do restaurante a gente o segue e ataca no caminho até o carro dele.

- Atacar usando o quê? Tenho livros e canetas, poderia ser útil.

- Pode ser sim, caso a gente decida sequestrá-lo e ofertar uma formação política no cativeiro.

- Casal, eu estou com vocês, mas preciso saber como fazer isso. Concordo que matar um fascista tropical faz a cadeia valer a pena. No entanto, preciso ter alguma esperança de sucesso.

- Tudo bem. Vou explicar o plano.

Carlinha começou a narrar todos os passos necessários ao cumprimento de nosso trabalho jurídico. Disse que tinha spray de pimenta e afirmou que se fosse necessário conseguiria uma faca com o cozinheiro. Entretanto, disse que seria mais prático que fizéssemos uma ação conjunta, todos nós envolvidos na execução das tarefas fundamentais no processo de um homicídio.

- Caio, você vai ficar na esquina da Gomes Freire com a Rua do Rezende, foi de lá que ele veio, então o carro oficial que ele usa deve estar lá. Laura, tire a blusa e fique de sutiã na esquina, quando o verme passar tu tenta atrair a atenção dele e o segue até o fim. Paulo, vá fumar um cigarro na porta do boteco que fica logo após o Nova Capela, pro caso dele sair pelo lado contrário. Zé (eu), vai seguir o cara junto comigo e me ajudará no ataque.

- Ataque, como será isso?

- Simples, assim que ele sair do restaurante vai caminhar até o carro, quando passar por aqui a gente levanta e vai caminhando discretamente atrás deles. Então, a Laura atrairá o cara bancando a prostituta insistente, mesmo que não o atraia, vai segui-lo fazendo que fique desatento. Quando passarmos pela Rua do Rezende terá menos gente e menos iluminação, então será a hora do ataque.

- Como atacaremos?

- Ele estará desatento por causa da Laura, também estará lento por causa da comida pesada. Nesse contexto, eu vou atacar o motorista com o spray de pimenta, tirando ele do combate. Enquanto isso, o Zé vai por trás e dá uma pedrada na cabeça do deputado.

- Poxa, não vai dar, esqueci minha pedra de ataque em casa.

- Deixe de ser covarde, tem uma obra no caminho, tá cheio de pedregulho lá.

Carlinha fala com confiança e segurança, mas era a única. O resto se borrava de medo, só Caio ainda tentava disfarçar para não decepcionar a namorada. Sentido o clima ficar morno, nossa pequena guerrilheira encontrou uma solução — Vou ao banheiro, me sigam e entrem um após o outro — Aguardando na fila vi minha amiga sair do banheiro elétrica, tal como os que a sucederam. Quando chegou minha vez compreendi o motivo, quatro rastros de cocaína e uma carreirinha inteira a minha espera. Caí dentro.

Era o que nos faltava, coragem, sorte que estão vendendo em pó. Munidos da ousadia irresponsável necessária às grandes realizações colocamos o plano em ação. Cerca de vinte minutos mais tarde, os desgraçados botaram suas caras no espaço público. Enfim chegara a hora do confronto. Os caras vieram em nossa direção, levantamos e os seguimos. Na esquina Laurinha abordou ambos de forma elogiosa e começou a oferecer um cardápio de serviços que interessou bastante ao supremo defensor das famílias cristãs. A caminhada prosseguiu por mais uns metros. Entre bêbados e travestis marchava excitado o soldado de cristo. Caio nos observou e começou a acompanhar nossos passos na calçada oposta. Quando nos aproximávamos da Rua do Senado, tendo superado a última aglomeração que se concentrava na calçada do Bar Vaca Atolada, o destino nos sorriu.

Carlinha tinha razão. A gente caminhava como se fosse um casal, seguindo nossos alvos que estavam dois ou três metros à frente. Nesse momento, o motorista puxou do bolso a chave do carro, apertou o botão e destravou o alarme de proteção veicular. Nesse instante, Laura tentou uma abordagem final, que os fez parar para ouvir. Enquanto as negociações se desenvolviam, Carla espirrou a pimenta nos olhos do motorista, mas fez efeito também no deputado. As duas baratas tontas rodopiavam desesperadas de tanta ardência, quando percebi no canto da calçada um senhor pedaço de pau.

A pedra que não achei foi muito bem substituída por aquela madeira de sustentar laje. Com o porrete nas mãos, lembrei de meu amigo de infância que foi morto pela milícia ao ser pego fumando maconha em nossa rua. Recordei as memórias de tanta gente que foi morta por uma polícia a serviço de políticos vagabundos. Imaginei que se tivesse o porrete certo, na hora certa, poderia fazer do mundo um lugar melhor. O certo seria dar um golpe certeiro na nuca do deputado e fugir pra longe. Mas, ele estava de terno, pagou caro pelo jantar, merecia um fim mais estético. Segurei o bastão como se fosse um jogador de baseball e acertei bem na têmpora.

A canção dos ossos faciais se quebrando foi linda, me lembrou o Salgueiro na Sapucaí. O desgraçado nem soube de onde veio o golpe, mas, foda-se, ele nunca ligou para os reflexos de suas frases de efeito, jamais se importou de enganar pobre para ganhar dinheiro fácil. Carlinha tinha razão. Olhei nos olhos dela e senti sua aprovação. Fiquei tão excitado que dei um porretada na nuca do motorista, só pra apagar e não dar trabalho. Depois chorei, não de arrependimento, nem de orgulho, apenas me emocionei com o prazer de fazer o bem, sem olhar a quem.

Por mim, pediria um uber e iria tomar a saideira vitoriosa em outra freguesia. Mas, Carlinha tinha razão. A gente poderia fazer melhor. A Lapa já tava vazia, era só botar os moribundos no carro deles, dirigir para algum lugar mais tranquilo e terminar o serviço. O que será que ela queria dizer com “terminar o serviço”? Fizemos o que ela falou, retornamos à Mem de Sá para buscar o Paulo e fomos adiante. Carla nos levava em direção à zona portuária, onde encontramos um galpão abandonado. Então entramos e começamos a planejar a solução final.

Paulo acendeu um baseado e começou a descrever tipos de punições que eram utilizadas na Europa Medieval contra as bruxas e os hereges — que falta me faz ter um cavalo — Disse ele. Enquanto isso, me ajudava a retirar os vermes da mala do carro. O motorista seguia desmaiado, já o Deputado sangrava um desespero consciente. Colocamos os dois no chão e começamos a discutir sobre o que faríamos. Laura sem dar aviso, tirou o short, a calcinha e se pôs de cócoras a urinar sobre o ferimento do político-ladrão. Muito foi discutido, até que Carla apresentou a melhor ideia.

- Caio, encontre um pedaço de fio, desses de instalação elétrica mesmo. Paulo e Zé, amarrem o deputado de frente para essa pilastra. Laura, não mije no motorista, ele é trabalhador.

Carlinha tinha razão, por isso ela começou. O fio encontrado por Caio virou um chicote nas mãos de sua companheira. Ela golpeou o deputado até que abrisse um corte em suas costas. Seguidamente cada um de nós se regozijou atacando o lombo daquele verme sangrento. Caso ele soubesse como a noite terminaria, certamente teria preferido pedir uma pizza.

- Meninos, semana que vem a gente vai beber na Barra da Tijuca — Disse a mulher enquanto dirigia.

Talvez eu vá. Carlinha raramente erra.

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Felipe Loureiro

Escritor, redator, professor e podcaster. Formado em história pela UFRJ, Mestre em Planejamento Urbano e Regional no Ippur e Doutor em Sociologia pela UC