Um nascimento difícil

Felipe Loureiro
2 min readApr 18, 2020

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Vovó sempre me disse que eu seria uma mulher forte, que minha raiz já era capaz de garantir isso, portanto, não havia outro caminho. Também me contou que não seria fácil, pois nunca é fácil tornar-se mulher. Dessa maneira, aos catorze anos de idade, ainda não conseguia ter certeza de haver compreendido o que ela me ensinara, mas confiava cegamente em minha velhinha.
Todas precisávamos ser fortes no natal daquele destemperado ano de 2018. Não seria fácil manter a tolerância e a paz diante do Tio Emílio, a quem minha mãe só se referia como “a vergonha da família”. O apelido não tinha relação direta com o fato dele ser filho do segundo casamento da vovó. O distanciamento decorria mais das diferenças profundas que haviam entre nós e ele. De acordo com a mamãe, minha avó decidiu se separar de Arthur, seu segundo marido, no dia seguinte ao nascimento do filho em questão. Qual o motivo para isso? O nome dado ao bebê: Emílio, nome do ditador que governava o Brasil com mão de ferro na época.
Vovó odiava ditaduras, nasceu em 29 de outubro de 1945, dia do fim da Ditadura Varguista. Sofreu com o desemprego do pai, capitão do exército perseguido após o Golpe de 1964. Chorou com o desaparecimento do vovô, seu primeiro marido, que era jornalista, que fora perseguido por denunciar torturas e homicídios realizados pelo regime ditatorial. Portanto, as opiniões provocativas do seu filho mais novo rasgavam profundamente a sua alma, levando Dona Ruth a reviver seu luto e sofrer com essa nova decepção.
Todos os anos ocorria o almoço de Natal na casa da Vovó, porque no jantar todos sempre tem algum compromisso com suas famílias prioritárias. Nesse ano, após uma eleição presidencial difícil de engolir, da qual a “gente” ligada ao meu Tio mais novo saiu vitoriosa, defendendo a família, a honra, as armas, as mortes e as desigualdades. Assim como, clamando por autoritarismo, obcecado por negar a história do Brasil e, incisivamente, as dores que machucaram a nossa família em particular. Minha querida vovozinha pediu que eu e minha mãe evitássemos temas que causassem desarmonia, porque nem ela aguentava mais as besteiras ditas pelo próprio filho.
Chegamos cedo à casa da nossa matriarca, a mesa já estava posta e Dona Ruth parecia animada. Pouco a pouco, todos foram chegando, menos o Tio Emílio. Quando o antigo relógio da sala declarou o meio-dia, todos começaram a comer a ceia, independente de ordem da anfitriã, que, por sua vez, não nos repreendeu, ao contrário, serviu-se junto a nós com leveza e alegria. Nesse instante, todos percebemos que uma família não se estrutura pelo nascimento, mas pela vontade de amar. Por fim, questionei a vovó:
– Vó, não vai esperar o Tio Emílio?
– Sim, minha neta, espero que ele se foda.
@felipedrloureiro poesianumadose
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Felipe Loureiro

Escritor, redator, professor e podcaster. Formado em história pela UFRJ, Mestre em Planejamento Urbano e Regional no Ippur e Doutor em Sociologia pela UC